À sombra do mundo
Sabe, eu me chamo de Filósofo por falta de um nome mais apropriado.
E, apesar de ter a coragem de me dar este título não merecido, a consciência cobra seu preço. Penso a todo o momento em como estou roubando o rótulo de quem sabe se definir, porque não consigo nem mesmo descobrir quem eu sou.
O pensamento ocorreu-me enquanto fazia a curva para entrar neste beco, ao qual não sei como cheguei. Tudo começou, claro, porque Maria cismou de me dizer palavras de muito mau gosto — ela está sempre dizendo coisas, e eu nunca estou escutando as coisas que ela diz, porque sou um maldito Humano e, por conseguinte, só me entra na cabeça o que eu quero que entre.
Está tudo um pouco confuso? Tentarei ser linear. Tenho dificuldade em ser linear às vezes, principalmente quando as coisas que Maria me diz e eu finjo que ignoro ficam ricocheteando-me a cabeça. Cacete, acabei de pisar numa barata morta. O que estou fazendo neste lugar mesmo?
Enfim, eu saí de casa porque não aguentava mais Maria e seu falatório. Passei, assim, a vagar sem rumo, e eis que desemboco nesta pocilga. As paredes dos edifícios que criaram aquela abertura no mapa rodoviário dessa cidade maldita estão descascadas. O chão é terra, lixo, algumas baratas, algumas baratas mortas.
Parece até comigo por dentro neste momento.
Às vezes temos esses impulsos loucos. Você sabe como, não? Pois bem, nesse momento, um deles me acometeu e comecei a alisar aquelas paredes em estado deplorável com minhas mãos frias. Ninguém deveria ter estado ali por um bom tempo.
— Você não faz ideia de como te compreendo.
Maria gritava comigo mais cedo sobre posicionamento. Ela dizia — dizia não, cuspia — que eu tinha que ser mais firme, que tinha que impôr minha opinião, que se eu continuasse vivendo para agradar os outros nunca deixariam de me ver como um maldito faz-tudo inexpressivo.
Obrigado pela dica, Maria, mas eu sei disso. Eu tenho um cérebro.
Fico realmente bravo com ela por essas coisas, mas, em momentos como este, nos quais a raiva começa a se dissipar, eu entendo porque ela me perturba dessa maneira. Deve ser realmente difícil acompanhar a vida de alguém como eu, ser amiga desse alguém, querer o melhor para ele, mas não conseguir tirá-lo da sombra do resto do mundo.
Outro espasmo de loucura. Deixo meu corpo escorregar pela parede e caio sentado no chão imundo do beco.
Abandonado à sombra do mundo.
Que apropriado.
Até que eu gostei daqui. Acho que vou ficar mais um instante...
Não é nada digno de um Filósofo. Não parece um lugar de onde sairia uma linha de pensamento brilhante ou onde se debateriam grandes outras ideologias já existentes. Aliás, parece um recinto inapropriado para qualquer evento extraordinário.
Mas, sabe, eu só me chamo de Filósofo por falta de um nome mais apropriado.