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Incomum



Ele entrou no meu bar com aqueles olhos humildes e aquela necessidade de conversar. E eu, claro, servi a cerveja que ele pediu. Ele olhou à volta, vendo o tipo de gente que frequenta esse lugar. Seu olhar meio assustado me fez entender que ele não fazia parte desse bando. Ele era uma espécie de intruso, ou apenas um marujo que entrou agora nesse navio pirata. 
Eu me divirto com a cena. 
— Olá — ele chama. O lugar é sujo, as pessoas são sujas, eu sou sujo. Mas ele ainda sente a necessidade de conversar. Simplesmente há momentos em que precisamos falar de nossa vida para algum desconhecido. Eu, mais que ninguém, entendo desse sentimento.
— Olá — digo, me apoiando no balcão do bar. 
Estou a todos ouvidos, parceiro, vamos ver o que você tem a me dizer.
— Você me vê vindo aqui pela primeira vez, mas quero deixar bem claro que eu sou trabalhador. Eu não uso drogas nem nada. Meu único vício é esse. — E ele aponta para a cerveja.
É, meu amigo, eu percebi essas coisas quando você entrou no meu bar. Sua boca pode dizer o que quiser, mas seus olhos não mentem. 
E sem contar que esse nem é um vício tão destruidor assim, se comparado a outros.
— Isso é bom — digo. Quero fazê-lo continuar falando. E eu sou sincero; afinal, odeio expulsar os drogados do meu banheiro. 
— Sim, verdade. Estou voltando duma festa da minha empresa agora.
— E o senhor trabalha no quê?
— Trabalho em obras. Na verdade, eu ainda não comecei a trabalhar. — Agora eu percebo que ele tem um sotaque carregado. Ele não é daqui. Não falo só do bar em si, mas do lugar todo. — A empresa é grande, sabe, e ela paga para você estudar o ofício antes de começar. 
— Sei bem como é. — Pego o pano de mesa e passo no balcão. Levanto o copo dele e a garrafa para poder limpar ali.
— E eu moro não muito longe daqui. Aí eu sempre passo por aqui, mas nunca parei para beber uma. Hoje eu resolvi fazer. E eu preciso beber fora de casa, sabe, porque a minha casa é alugada e o dono dela é evangélico. Ele não gosta muito se eu bebo ou fumo na casa dele. 
— Eu entendo. Esse tipo de gente odeia vícios mesmo. 
— Odeia? Não necessariamente. O vício deles é diferente. Eu acredito em Deus, entenda, mas acho que a pessoa deve ter somente a fé dentro de si mesmo. Não é necessário prová-la indo sempre à igreja ou dando o dízimo constantemente. Mas gente, você não precisa provar sua crença em Deus pagando a igreja sempre que vai visitá-la.
Percebo naquele momento que aquele é um homem com uma opinião bem difundida. O tipo de gente que sabe colocar seu ponto de vista pra fora e dizer o que pensa. Eu gosto de gente assim. 
E eu percebo que, se ele levou a conversa para esse lado religioso, existe algo que não o agrada. E talvez esse seja o verdadeiro motivo de ele querer conversar.
— Eu já fui para a igreja diversas vezes depois que cheguei aqui, eu vim lá do norte, e eu já dei quando podia dinheiro para eles. Mas muitas vezes já visitei só com o dinheiro de passagem. Ninguém é obrigado a servir a igreja dessa forma, tão assídua. Afinal, Deus está dentro de nós e não na igreja.
— Concordo. É algo natural, não algo comprado.
— E não falo de comprado assim, só com dinheiro. Eu larguei minha esposa lá porque ela tinha esse vício de igreja. E todas as minhas filhas faziam parte do coro da igreja e ela queria estar lá todo santo dia. Eu não vejo nada de errado, entenda; eu só comecei a achar estranho quando ela defendia mais o pastor que eu. Não é possível, homem; ela só podia estar dando pro pastor. Ela estava lá com ele todos os dias, dizendo que eu deveria tirar o dinheiro de nosso sustento para dar pra igreja. “É o salário do homem” ela dizia sempre, e eu dava, mas só quando sobrava. Um dia ela pediu para eu entrar para o coro da igreja, mas eu não tinha tempo. Eu tinha que sustentar ela e nossas duas filhas, mas ela queria que eu entrasse. E eu me recusei. Recusei mesmo. A gota d’água foi quando ela me disse: “se não vai ser no amor, vai ser na dor”. Então eu me separei dela. Não no papel. Eu planejei minha vinda para cá. E vim. 
— E suas filhas?
— Eu mantenho contato com elas sempre. Mas através da minha sogra, que é uma segunda mãe para mim. Eu nunca mais falei com minha esposa. Nunca. E agora estou aqui, trabalhando e vivendo por aí. Aluguei essa casa porque é baratinho e o homem me ajuda. Mas ele quer que eu entre para a igreja dele. A igreja evangélica dele. Eu leio a bíblia com ele sim, mas visitar sua igreja? Me tornar uma testemunha de Jeová que nem ele quer? Aí não. Até porque eu ainda não tenho tempo, senhor, porque eu tenho que trabalhar muito.
Uma pessoa com problemas. Uma pessoa sofrida. Vejo que ele é alguém que tenta se manter sempre. Uma pessoa que sobrevive da melhor forma possível.
Eu entendo agora que ele não deveria estar nesse bar porque ele ainda tem esperança. É o tipo de gente esperançosa, que ainda luta pelo que acredita e pelo que deseja. E o que ele deseja?
Ele dá um sorriso e me diz:
— Eu estou juntando dinheiro para comprar um terreno. Vou construir uma casa e quando as minhas filhas crescerem, elas vão querer procurar o pai. E eu vou entregar a chave nas mãos delas e dizer: “essa casa é de vocês”. 
Sim, é tudo o que ele quer. Deixar um legado para as filhas que ele deixou com sua esposa. Ele ainda as ama, mas não pode ficar com elas. E é só isso que um homem simples como ele deseja. 
Percebo que ele não tem um dedo. É assim, de repente; eu olho para ele levantando o copo e ele está sem o polegar da mão direita.
— O que houve aí, amigo? — Pergunto. Ele olha e dá uma risada.
— Foi acidente de trabalho. Lá no norte. Eu trabalhava numa fábrica e perdi o meu dedo. Mas nem é tão ruim porque aí eu tenho o certificado de deficiência. Olhe aqui. — Ele pega a carteira e puxa vários cartões. — Um para metrô, outro para trem, ônibus, é só ver. Eu não pego fila em banco, em ônibus ou metrô nem nada disso. Eu tenho preferência. É só mostrar esse cartão. É quase mágica. 
— Parecem ser bem úteis esses cartões. 
— Se é! Eu só não tinha o do ônibus. Por isso eu não tinha preferencial em ônibus. Mas um dia eu olhei para um lado, dentro de um ônibus e encontrei um! Dava para passar no ônibus, valendo como passagem e eu testei, mas o dono já tinha cancelado. Mas não me importei. Era o único que eu não tinha. Eu colei minha foto, como pode ver. — E ele me mostra. Eu realmente não tinha percebido isso. Só percebi que não era dele porque os nomes eram diferentes. — Eu não estou fazendo nada com o cartão perdido, eu só estou usando-o com minha foto porque eu não consegui o meu. Viu como as coisas sempre dão certo?
Nem sempre, meu amigo, nem sempre. Mas não sinto a mínima vontade de dizer aquilo para ele. Ele é um homem que se vira no que dá pra fazer. Uma pessoa esperançosa, como eu já disse; alguém que sabe que não importa o quão a situação vai ficar difícil para si, ele sabe que poderia ser pior. E fará de tudo para reverter ao seu favor. 
É o tipo de pessoa incomum que visita meu bar às vezes.
É o tipo de gente inocente que vê o mundo colorido, que necessita um pouco de realidade.
Mas por que dar realidade a esse tipo de gente se é tão bonito a forma esperançosa que eles vivem suas vidas?
Se todos no mundo vissem o mundo acizentado, tudo seria mais sem graça. Um mundo com pessoas sem esperanças seria certamente um mundo não tão evoluído. 
— Eu gostei de conversar com você. — Ele me diz e já não parece tão intimidado com tudo e todos a sua volta. Ele me paga a cerveja. — Quando der, eu voltarei aqui e conversaremos mais vezes.
E ele sai. Eu sei que ele irá continuar no seu emprego, na firma que está lhe pagando tão bem para ele saber como construir os prédios que eles pedem. E ele irá dividir o dinheiro entre suas cervejas, seu aluguel e o terreno que irá comprar para suas filhas. 
No fim, ele é uma pessoa boa. E como isso é raro de ver por aqui. Não, não falo só do bar. Falo do todo o mundo.

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