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O enigma da faixa de pedestres

Eu ouvi este caso um dia desses - acho que Maria me contou sobre num dos momentos em que não estávamos brigando feito loucos - e desde então venho deitando minha cabeça sobre ele todas as noites. Não literalmente, claro, mas... Ah, vamos direto ao assunto.

Havia um homem (sempre havia) que trabalhava como instrutor de uma autoescola em uma cidade onde o trânsito era um caos. Tiago, era esse o nome dele, ou assim me disseram. Ele era um rapaz muito tranquilo e que gostava das coisas do jeito certo, o que por algum motivo bizarro nem sempre é um elogio nas terras em que habitamos.

Ficava, como esperado, indignado com o caos que eram as rodovias da cidade. Como instrutor, tentava enfiar na cabeça dos alunos o máximo de bom senso que conseguisse. Apesar disso, não era tão exigente assim nas suas avaliações, com exceção de uma coisa: a faixa de pedestres.

Tiago dizia e repetia sucessivamente na cabeça de quem estava ensinando que respeitasse a porcaria da faixa. Afinal de contas, o fato de ninguém o fazer era naquela maldita cidade, para ele, a mais grave das infrações e a raíz de todos os problemas.

"É tão difícil assim?", ele apelava. "Uma hora ou outra, você vai estar caminhando, perdido numa cidade dominada por carros, e agradecerá se alguém parar para você passar."

Seu engajamento na causa era tanto que, em todas as provas que aplicava, passava por uma faixa de pedestres onde um funcionário da autoescola aguardava para "atravessar". Se o bendito avaliado passasse direto, a reprovação era automática.

"Não há tolerância para quem não respeita a faixa. Onde é que esse mundo vai parar, se nem coisas tão simples vocês se dignam a cumprir?", respondia aos que falhavam no teste.

E, desse modo, viveu ele os anos que se seguiram, às vezes ignorado, às vezes levado em consideração, mas sempre falando sobre as sacras linhas brancas traçadas no asfalto. Na verdade, se não fosse pelo fim que levara, acredito que poucos se lembrariam da figura interessante que ele representava.

A questão é que, num dia desses que parece como qualquer outro, mas esconde maliciosamente em seu porvir uma reviravolta, Tiago foi atropelado enquanto cruzava a faixa de pedestres.

O carro estava numa velocidade tão alta que a morte foi inevitável. Ele foi morto justamente pela batalha que travara por toda sua vida.

Há, todavia, um porém nisso tudo. Durante os anos de serviço prestado, o bom homem tocara muitas cabecinhas ignorantes e, com o tempo, observou-se uma mudança na cidade. Obviamente, Tiago não vivera para ver suas sementes florescerem, mas, alguns tantos anos depois, as pessoas daquela cidade indigente estavam, em maioria, respeitando a faixa de pedestres. A batalha foi ganha, o dragão morto pelo legado que deixou o cavaleiro incinerado.

Após ouvir essa história, uma evidente questão prendeu-me à cabeça. Neste momento, proponho-a a meus digníssimos leitores:

Valeu a pena o combate vitalício do instrutor Tiago contra a faixa de pedestres?


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