É sempre ao fim do expediente que eu reúno as garrafas vazias, junto das latas que antes levavam algum alimento, e me desfaço na lixeira atrás do beco. Esse é o tipo de coisa que eu preciso fazer, me livrar de toda essa sujeira. Mas não jogo fora a comida; os restos dos aperitivos pedidos por meus clientes. Não, isso jamais. Eu sempre junto em uma quentinha e a levo para a parte de trás do beco, perto do lixo.
O Beco tem uma inquilina e eu poderia dizer que é um cão, mas não é; é um ser humano. Uma mulher, uma mendiga. Ofereço o prato de comida a ela, que se senta na sua cama de papelão e começa a comer. Jogo fora meu lixo. E a observo ali, se alimentando.
— E se eu jogasse essa comida fora? — Questiono e ela olha para mim. — Se eu a misturasse com as bebidas vazias e os cacos de vidro dos copos quebrados? Como seria para você?
— Como seria? Olhe em volta, você acha que eu teria alguma opção? Eu iria seguir o meu instinto e se ele me direcionasse a cavar entre os restos do lixo para encontrar os meus… seria assim para mim.
— Impressionante. Falo da sua situação mesmo, não me olhe assim. O desperdício de outros é sua preciosidade. Seu diamante. E você depende disso. Isso me faz pensar um pouco. Em todo esse descaso com pessoas do seu tipo. O que lhes faz tão diferentes, tão dependentes? Acho que isso é um aspecto doente da sociedade. Sabe, diferenciar as pessoas de forma tão drástica assim. Melhor: um aspecto de uma humanidade doente.
— Você diz “humanidade doente” como se fosse algo de todo ruim. Pare para refletir por um minuto no que temos aqui, com essa situação: o meu alimento, o meu sustento, é o que foi um excesso para alguém. E para mim, chega a ser uma falta. Nós temos esse tipo de doença e mesmo se fosse achada a cura, teríamos outra para humanidade e assim por diante. De certa forma é um ciclo ao qual nos dedicamos, não acha? Se você tivesse a oportunidade de erradicar isso, o que faria?
— É o que você disse: se não fosse isso, talvez fosse outra coisa. Faz parte de ser o que somos ser do jeito que somos. Faz parte do ser um ser humano manter-se como um câncer… para nós mesmos. Você está acostumada a essa sua situação e talvez não haja nada mesmo para remediar. E ninguém a culpar. Então eu lhe respondo a sua pergunta: e se eu pudesse erradicar esse problema, erradicaria? Minha resposta é não. É um problema que precisa existir. É uma necessidade nossa ter alguém embaixo de nós para sentirmos pena. Para olharmos e estalarmos a língua e fazer boas ações que na verdade fazem parte de uma hipocrisia universal. E eu não entrego esses restos de comida a você por pena, antes que venha falar algo. Entrego porque você sente fome, assim como eu. Que por mais que nos dividamos em sociedade, ainda temos esse lado animalesco dentro de nós. E entrego porque eu jogaria fora, de qualquer maneira.
— Essa é a questão, de certa forma sou eu… e eu aqui nesse Beco. Se me sobrar algo dessa marmita, não será por desperdício ou nem nada, mas sim poção para eu ter confiança de que terei algo a mais no dia seguinte, me entende? Segundo a sociedade, eu não tenho ninguém para sentir esse seu tipo de pena além de mim, mas é aí que eu me divirto. Eu me divirto por saber que todos estão errados ao exaltarem que os penosos são os que vivem como eu, sem nada para ostentar. Mas quer saber a verdade? Eu já estive do outro lado e tenho muito mais o que ostentar agora do que já tive em toda minha vida.
— Revela-se muito mais que um cão, Mendiga. Alguém de personalidade. Alguém que não merecia estar desse lado. Talvez do meu lado, quem sabe, se isso fizer qualquer tipo de diferença. Você ostenta decisões, mulher, que valem mais do que dinheiro. Ostenta visão, e isso é impressionante. Levante-se daí, vamos aproveitar que não há sociedade nenhuma aqui nos olhando. Divida uma garrafa comigo e me deixe ser o pedinte da noite. E pedir para ouvi-la falar mais.